Há pouco tempo atrás convidaram-me para ir a uma tasquinha na Graça, numa tarde que se previa de copofonia. Foi com alguma surpresa que assisti nessa mesma tarde à metamorfose da pequena “Tasca do Jaime” numa verdadeira casa de fados, que se foi enchendo de magia e encanto com o passar das horas e das vozes de quem ali quisesse cantar, à boa maneira do fado vadio. Aos poucos rendi-me às vozes e às guitarras, numa doce hipnose acompanhada de vinho tinto e queijo com presunto. Foi assim que tomei consciência de algo que desde há muito sinto mas nunca questionei: o fascínio que tenho pela natureza humana. Não me considero um apreciador incondicional da raça humana, onde encontro mais virtudes e defeitos que em qualquer outra. Somente a raça humana é capaz de produzir obras com a grandiosidade do Taj Mahal, a beleza do Lago dos Cisnes ou a perfeição das Pirâmides e, ao mesmo tempo, envolver-se em carnificinas e genocídios. A lista de atrocidades cometidas pela raça humana não caberia neste espaço, tal como não caberiam todas as suas obras primas. Somos uma raça de extremos, capaz do melhor e do pior. Talvez por isso nunca me tenha permitido ser um admirador incondicional da raça humana.
Não vi obras de arte na Tasca do Jaime. Não vi perfeição. O que vi foi paixão e entrega, sem reservas e sem pedir nada em troca. Vi o ideal humano representado numa tasca da Graça, entre populares, turistas, vinho, cerveja e petiscos. Vi-o nos olhos de quem cantava e nas lágrimas escondidas de quem ouvia emocionado. Sem televisão, sem notícias da crise ou da guerra, sem a pressão do dia-a-dia, sem distracções. Uma assembleia de gente de todas as idades reunida em volta de uma paixão comum. O mundo já foi assim. O mundo podia ser assim.
Somos seres apaixonados. Nascemos carentes de afecto e procuramos por esse afecto durante toda a nossa vida. Apaixonamo-nos pelo que realizamos e é essa paixão que alimenta a nossa evolução como indivíduos. A nossa entrega a nós mesmos e às nossas capacidades é superior a qualquer credo, religião ou poder instituído. Foi essa entrega, essa paixão pelo constante aperfeiçoamento, que nos trouxe as mentes mais brilhantes e as obras mais sublimes. É a falta dessa paixão que nos faz duvidar de nós mesmos e da raça humana. Como indivíduos somos brilhantes, como multidão somos acéfalos. Impelidos na busca da perfeição somos capazes de feitos inéditos, enquanto que como parte de uma população sem rosto e sem escolaridade obrigatória somos apenas mais um número numa triste estatística que de perfeita só tem a sua previsibilidade.
Sou um apreciador incondicional da perfeição humana, sob qualquer das suas formas. Tenho uma admiração profunda por qualquer pedreiro que domine a sua arte e a desempenhe com orgulho, ao passo que abomino qualquer doutor desprovido de carácter e de princípios.
Talvez isto não faça sentido no contexto da UPPA. Talvez devesse ter escrito sobre o meu cão ou sobre as crueldades a que assistimos diariamente contra os animais. Talvez. No entanto parece-me ser pedir demais. Como podemos pedir a alguém que maltrata o seu próprio filho que não o faça ao seu animal de estimação? Como podemos pedir a quem foi maltratado que retribua com amor e carinho? Como podemos pedir paixão onde houve abandono, miséria e pobreza de espírito? Somos uma raça em conflito interno, devíamos ser colocados em quarentena antes de nos ser permitido interagir com as outras espécies.
O que me fez aproximar da UPPA não foi uma causa nobre nem o profundo carinho que tenho por todos os animais. Ironicamente, o que me fez aproximar foram as pessoas e a sua paixão. Foi o brilho nos olhos de quem me falava dos animais que recolhia e das adversidades com que lutava. Foi o conhecer quem não baixe os braços e quem tem a coragem de tentar o impossível. Não deixa de ser estranho, tomar consciência da verdadeira grandeza da natureza humana num canil, a tratar de animais abandonados. Talvez seja tão estranho como fazê-lo na Tasca do Jaime, ao som do fado vadio.
António Carreira, fotógrafo e sócio nº 83 da UPPA